“Arrendamento coercivo ou forçado – “velho” ou “novo” regime?” – Francisca Sá Carneiro, Associada Principal da Área de Imobiliário da CCA Law Firm

Francisca Sá Carneiro, Associada Principal da Área de Imobiliário da CCA Law Firm

Uma das medidas mais polémicas que foi recentemente anunciada pelo Governo português, no âmbito do pacote “Mais Habitação”, foi a do regime do arrendamento coercivo ou forçado. Esta medida tem sido apresentada como não se tratando de uma novidade a introduzir no atual regime legal, mas antes como uma forma de operacionalizar o que já consta, efetivamente, da lei portuguesa. Será mesmo assim?

O conceito de arrendamento “forçado” é definido, no Decreto-Lei número 555/99, de 16 de dezembro ( “RJUE”), como “o arrendamento de edifícios ou frações autónomas, assumido por uma entidade administrativa, pelo prazo estritamente necessário para o efeito, com o objetivo de garantir o ressarcimento das despesas incorridas com a realização de obras coercivas, através do recebimento das rendas relativas a contrato previamente existente à intervenção que se mantenha em vigor ou, quando este não exista ou tenha cessado a sua vigência, pela celebração de novo contrato”. O artigo 108.º-B do RJUE prevê ainda como se processa, na prática, este arrendamento.

Antes de avançarmos para uma análise mais detalhada deste regime, é importante referir que o RJUE é um diploma com mais de vinte anos e que foi criado com o propósito de rever as normas aplicáveis ao licenciamento municipal de loteamentos urbanos, às obras de urbanização e às obras particulares, de forma a tentar simplificar e harmonizar os normativos existentes, garantindo o respeito pelos interesses públicos, urbanísticos e ambientais (conforme mencionado no prefácio do referido diploma).

O regime do arrendamento forçado está previsto numa subsecção referente à implementação de medidas de tutela da legalidade urbanística, onde os órgãos administrativos competentes estão obrigados a adotar as medidas adequadas para restaurar a legalidade, quando sejam realizadas operações urbanísticas.

Assim, e em face do incumprimento de qualquer uma destas medidas, pode esse órgão administrativo tomar posse do imóvel, para garantir que essas medidas são tomadas e executadas. A título de exemplo, encontrando-se um imóvel em mau estado de conservação, e tendo sido os seus proprietários notificados pelo competente município para executar obras de conservação necessárias à correção de más condições de segurança ou salubridade, e não as executando, o município tem legitimidade para tomar posse do imóvel de forma a executar essas obras.  Apesar dessas obras serem realizadas pelo município, os respetivos custos terão de ser suportados por quem tinha obrigação de as fazer – in casu, os proprietários do imóvel que foram notificados para esse efeito.  Nesta medida, prevê o artigo 108º do RJUE que “as quantias relativas às despesas realizadas são de conta do infrator”.

É neste cenário que surge o conceito do arrendamento forçado. O artigo 108º-B do RJUE estabelece que não tendo sido pagas as quantias acima referidas, “o município, em alternativa à cobrança judicial da dívida em processo de execução fiscal, pode optar pelo ressarcimento através do arrendamento forçado. O município procede ao arrendamento forçado do imóvel mediante procedimento concursal ou através da aplicação de regulamento municipal para a atribuição de fogos. Durante a vigência do arrendamento forçado, a câmara municipal pode executar as obras de conservação e ou de reparação necessárias.”

Estabelece ainda que “O proprietário interessado em retomar a posse do imóvel deve manifestar por escrito essa intenção, com cento e vinte dias de antecedência e, havendo montantes em dívida ainda por liquidar, a comunicação por escrito é acompanhada com comprovativo do seu pagamento integral. Encontrando-se liquidada a totalidade da dívida e caso o proprietário não retome a posse no prazo de vinte dias, ou, sendo desconhecido o seu proprietário, a partir daquela data, pode a câmara municipal disponibilizar o imóvel para arrendamento, desde que cumpridos os seguintes requisitos: (i) o valor das rendas tem de ser depositado em conta bancária aberta especificamente para o efeito, caso o proprietário não tenha procedido à indicação de conta bancária para o efeito; (ii) o município pode ressarcir-se das despesas realizadas para fazer face aos encargos de gestão e manutenção do imóvel que comprovadamente realizar durante o período em que durar o arrendamento.”

Considerando o exposto, existem dois aspetos a salientar: (i) o arrendamento forçado surge como uma alternativa à cobrança judicial de dívidas que surgem no âmbito do incumprimento de medidas da tutela da legalidade; (ii) o imóvel apenas é disponibilizado para arrendamento se o seu proprietário não retomar a posse desse imóvel ou se o proprietário desse imóvel não for conhecido.

A atual proposta de alteração ao RJUE prevê a inclusão de um artigo novo, o 108º-C, e que diz respeito ao arrendamento forçado de casas devolutas. Nos termos da proposta de redação do referido artigo, “o município territorialmente competente remete ao respetivo proprietário, consoante os casos: a) notificação do dever de conservação, promovendo a execução das obras necessárias, em caso de incumprimento daquela notificação; ou b) notificação do dever de dar uso à fração autónoma, e, querendo, apresentação de proposta de arrendamento, nos termos previstos no Decreto-Lei número 89/2021, de 3 de novembro (1). Caso o proprietário recuse a proposta ou não se pronuncie no prazo de noventa dias a contar da sua receção, e mantendo-se o imóvel devoluto, os municípios podem proceder ao arrendamento forçado do imóvel.”

Olhando para o conteúdo e propósito desta norma – tratando-se, na verdade, de um artigo integralmente novo – parece ser notório que a mesma visa proteger o direito à habitação, aumentando o número de casas passíveis de serem arrendadas – contexto bastante diferente do regime do arrendamento forçado atualmente previsto no RJUE, conforme acima referido.

Assim, estaremos, portanto, perante um regime que já existia ou perante um, efetivamente, novo? Fica a reflexão.

(1) O referido decreto-lei regulamenta as normas da Lei de Bases da Habitação – Lei n.º 83/2019, de 03 de setembro – relativas à garantia de alternativa habitacional, ao direito legal de preferência e à fiscalização de condições de habitabilidade e que prevê a possibilidade de um proprietário dar de arrendamento um imóvel em caso de receber uma proposta por parte de um município.