Portabilidade

João Fonseca – Perito Avaliador de Imóveis – MRICS, REV, CMVM

De uma forma um pouco simplificada, a portabilidade de um relatório de avaliação imobiliária pode ser definida como a faculdade que é conferida a esse relatório de avaliação de ser apresentado a mais que uma instituição de crédito, permanecendo válido.

Esta faculdade é muito interessante quando um cliente bancário pretende adquirir um imóvel com recurso a crédito hipotecário. Assim, é-lhe permitido apresentar o mesmo relatório de avaliação a entidades bancárias distintas, obtendo poupanças significativas. Em Portugal, os custos da avaliação de imóveis que servem de colaterais são imputados aos clientes.

É um assunto que tem vindo a ser discutido ao longo dos anos, tendo já sido objeto de um projeto de lei do Partido Socialista. Estará novamente a ser colocado na ordem do dia, nomeadamente no âmbito da tentativa de criação de Normas Portuguesas de Avaliação.

Não é minha intenção ao escrever este artigo opinar sobre a bondade ou não da ideia, mas sim tentar discutir se tecnicamente a ideia é correta ou em que moldes poderá ser correta e também referir eventuais impactos no mercado da avaliação imobiliária.

Para que a portabilidade possa ser conseguida, inevitavelmente terá de ser profundamente discutida a atribuição de um prazo de validade aos relatórios de avaliação. Só desta forma será possível ao cliente bancário conseguir que a avaliação valha para apresentar às diversas instituições bancárias onde possa solicitar crédito.

Poderá um relatório de avaliação ter um prazo de validade? Poderá ser válido por seis meses?

Para conseguirmos responder com certeza a estas questões temos também que ter a certeza de qual a noção de base de valor que está implícita na avaliação para crédito hipotecário. Não parece, no entanto, que em Portugal exista uma clareza absoluta em relação à base de valor a aplicar.

Antes da promulgação do Decreto-Lei nº 153/2015 esteve em discussão pública o documento “A avaliação e valorização de imóveis – uma abordagem integrada para o sistema financeiro português – documento de consulta, dezembro de 2013, do Banco de Portugal, CMVM e Instituto de Seguros de Portugal”, que salientava:

“Quanto ao conceito de valor do imóvel, para o setor bancário adota-se o conceito de “valor do bem hipotecado” (mortgage lending value ou MLV), como limite superior, para todos os imóveis que caucionam créditos hipotecários. Trata-se de um conceito “through-the-cycle” (e não “point-in-time”), o qual tem por base uma avaliação prudente do valor do imóvel, considerando os aspetos sustentáveis a longo prazo desse imóvel e as condições normais do mercado, afastando assim os elementos especulativos dessa avaliação.”

Em contraponto a esta informação, o documento do RICS “Bank lending valuations and mortgage lending value”, 1st Editions, March 2018, inclui Portugal na lista de países que utiliza a base de valor “valor de mercado” para definir o “Loan to Value” (LTV). Esta também é a prática na maior parte dos relatórios de avaliação que sustentam o crédito hipotecário.

Por sua vez, o Decreto-Lei nº 153/2015 é omisso quanto à utilização do valor de mercado ou do valor do bem hipotecado.

Chegados aqui, podemos concluir que é errada a portabilidade se a base de valor utilizada for o valor de mercado e que poderá ser correta se for utilizado o valor de bem hipotecado (Mortagage Lending Value) ou ainda, como alternativa, a imposição de um “hair-cut” ao valor de mercado para inclusão na fórmula do LTV.

Esta minha tese é sustentada na definição de valor de mercado, segundo as IVS- International Valuation Standards:

“Estimativa do montante mais provável pelo qual, à data da avaliação, um ativo ou um passivo, após um período adequado de comercialização, poderá ser transacionado entre um vendedor e um comprador decididos, em que ambas as partes atuaram de forma esclarecida e prudente, e sem coação.”

(Nas IVS, o MLV não é considerado uma base de valor).

Como podemos verificar, o valor de mercado é reportado à data da avaliação, e não a uma data posterior e muito menos a um intervalo temporal. Deste modo, é impossível compatibilizar a noção de “valor de mercado” com a portabilidade, por via da necessidade de atribuir um prazo de validade aos relatórios.

(A mesma questão se coloca se for adotada a noção de valor de mercado das EVS- European Valuation Standards).

Quanto aos efeitos colaterais de uma imposição da portabilidade, recuperamos o que o anterior projeto de decreto-lei do Partido Socialista pretendia implementar, e que parecia merecer consenso parlamentar:

“O mutuário ou candidato a mutuário pode propor à instituição de crédito mutuante que utilize um relatório de avaliação que tenha sido realizada a expensas do mutuário ou candidato a mutuário desde que o mesmo:

  1. a) Tenha sido emitido há menos de seis meses na data em que o mutuário ou candidato a mutuário realizam a sua proposta;
  2. b) Tenha sido efetuado por perito avaliador de imóveis registado junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários nos termos da Lei n.º 153/2015 de 14 de setembro.
  3. c) Caberá à instituição de crédito mutuante suportar os custos da avaliação caso esta não aceite a proposta apresentada nos termos do número anterior.”

A manterem-se os moldes desta proposta, poderá existir alguma instabilidade no setor das avaliações para crédito hipotecário, pois quer a banca por via da diminuição de comissões, quer as empresas do setor por manifesta redução de trabalho, poderão vir a ser prejudicadas.

Ainda no âmbito da tentativa da anterior legislatura de implementar a portabilidade, é interessante recordar a “Nota Técnica” do deputado João Almeida, que reconhecia, entre outras questões, que existia portabilidade em Espanha (onde prevalece o Mortgage Lending Value) e que em França não existia referência à portabilidade (onde prevalece a base de valor “valor de mercado).

Finalmente, algumas palavras para o perito avaliador de imóveis.

Existindo portabilidade, vai existir uma utilização massiva de um relatório de avaliação, por entidades diferenciadas. É justo o perito avaliador de imóveis não ser devidamente compensado por esta multiplicidade de utilizações?

Existindo portabilidade, não deveria o perito avaliador de imóveis ser questionado, a cada utilização do relatório de avaliação, da sua atualidade? E claro, receber a justa compensação?